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De Gaza ao Congo: Sionismo, genocídio e os males de não aprender com a história

Palestinos deixam suas casas sob bombardeios de Israel, em Deir al-Balah, na Faixa de Gaza, em 6 de janeiro de 2024 [Ashraf Amra/Agência Anadolu]

Milhares de quilômetros separam Uganda e Congo da Faixa de Gaza; no entanto, ambos os lugares têm vínculos com a Palestina que costumam ser ignorados por análises geopolíticas convencionais. Em 3 de janeiro, contudo, revelou-se que o governo do primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, discute ativamente propostas para transferir à força milhões de palestinos a países do continente africano, em troca de um valor fixo.

O debate sobre a transferência compulsória dos palestinos de Gaza supostamente circula na elite política israelense desde 7 de outubro. Todavia, o fato de permanecer em aberto após três meses desde o início da guerra a Gaza sugere que as propostas coloniais não são apenas resultado de um momento específico da história, mas sim uma política abrangente.

Mesmo uma breve olhada nos registros históricos de Israel apontam para o fato de que a expulsão em massa dos palestinos nativos — ou “transferência”, no jargão israelense — foi e continua sendo uma estratégia basilar do projeto sionista, que pretende resolver ao Estado de apartheid aquilo que ele descreve como “problema demográfico”.

Muito antes do combatentes das Brigadas al-Qassam, braço armado do movimento Hamas, cruzarem a cerca nominal em Gaza e o território designado Israel, em 7 de outubro, líderes políticos do Estado sionista debatiam aberta e sucessivamente como reduzir ao máximo a população nativa para consolidar uma supremacia judaica na Palestina histórica. A ideia não se confinou a extremistas do governo atual, mas foi abordada também por outras figuras, como o ex-ministro da Defesa Avigdor Lieberman, que há quase dez anos sugeriu um “plano de escambo demográfico”.

Mesmo intelectuais supostamente liberais apoiam a ideia — tanto em princípio quanto na prática. Em janeiro de 2004, Benny Morris, um dos mais famosos historiadores israelenses, lamentou em entrevista ao jornal Haaretz que o primeiro primeiro-ministro de Israel, David Ben-Gurion, foi incapaz de expulsar a totalidade da população autóctone durante a Nakba, ou “catástrofe”, em maio de 1948, quando foi criado o Estado de Israel sobre as ruínas de mais de 500 cidades e aldeias.

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Provas adicionais de que a ideia de “transferência” não se limita à reação sobre 7 de outubro se mostram pela celeridade com que planos detalhados vieram à tona desde então. Em 17 de outubro, o Instituto Misgav de Segurança Nacional e Estratégia Sionista emitiu um artigo neste sentido, seguido três dias depois por um editorial da rede israelense Calcalist ecoando os apelos pela expulsão forçada dos palestinos de Gaza.

Egito, Jordânia e outros países árabes imediatamente expressaram seu repúdio absoluto ao plano, como indicativo da seriedade de tais propostas.

Logo em 2 de janeiro, declarou Netanyahu: “Nosso problema é encontrar países dispostos a absorver os palestinos de Gaza”. No entanto, acrescentou: “Estamos trabalhando nisso”. Sua retórica não é um caso isolado. O ministro das Finanças, Bezalel Smotrich, corroborou: “O que precisa ser feito em Gaza é encorajar a emigração”.

Foi então que o discurso oficial de Israel adotou em uníssono o termo “migração voluntária”, muito embora não haja nada de “voluntário” em desabrigar sob bombardeios e fome cerca de 2.2 milhões de pessoas, empurradas sistematicamente à fronteira com o Egito.

Em sua denúncia legal ao Tribunal Internacional de Justiça (TIJ), o governo da África do Sul citou expressamente os planos de transferência à força do Estado israelense contra a Faixa de Gaza, como confirmação de dolo israelense em conduzir genocídio e limpeza étnica.

Devido à falta de entusiasmo por parte de aliados ocidentais, diplomatas israelenses estão girando o mundo em busca de governos dispostos a receber os refugiados palestinos. Vale imaginar o que seria se qualquer outro país fizesse isso: matar civis na escala dos milhares, incluindo mulheres e crianças, e então negociar por aí para transferir os residentes em troca de dinheiro.

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Não apenas Israel fez da lei internacional uma verdadeira piada, como alcançou níveis sem precedentes de baixeza no que se refere ao comportamento de um Estado, não importa sua localidade ou seu momento histórico, seja na Antiguidade ou nos tempos modernos. Porém, o mundo parece insistir em lavar as mãos enquanto vê, apoia — como no caso de Londres e Washington — ou emite meras notas de repúdio sobre o banho de sangue que toma Gaza, sem quaisquer ações efetivas para impedir que um cenário ainda pior se desenrole.

Há uma coisa que talvez não seja de conhecimento do público geral: o movimento sionista, ideologia colonial que fundou Israel, considerou em suas primórdios a hipótese de transferir os judeus do mundo ao continente africano, para estabelecer ali seu próprio Estado, antes de escolher a Palestina como seu destino. O chamado “Plano Uganda” de 1903 foi proposto por Theodor Herzl, pai-fundador do sionismo político, no Sexto Congresso Sionista. A ideia se baseava em uma proposta do então Secretário do Reino Unido para as Colônias, Joseph Chamberlain. No entanto, eventualmente caiu por terra, embora os sionistas insistissem em negociar um pedaço de terra que não lhes pertencia.

Se compararmos a linguagem genocida, racista e desumanizante da atual líderes israelenses, certamente veremos uma intersecção de larga escala com a forma com que supremacistas europeus costumam aludir às comunidades judaicas. O súbito interesse sionista no Congo, como eventual “pátria” aos refugiados palestinos reforça mais outra vez a noção de que o sionismo vive nas sombras de sua própria história, ao projetar um racismo notavelmente europeu contra os palestinos.

O ministro de Patrimônio de Israel, Amihai Eliyahu, afirmou em 5 de janeiro que colonos e soldados “devem encontrar formas ainda mais dolorosas do que a morte” para se livrar dos palestinos de Gaza. Não é difícil reunir paralelos de linguagem e método com o movimento nazista na Alemanha, que buscou exterminar os judeus na primeira metade do século XX. Se a história costuma repetir-se, os ecos supremacistas de Israel são particularmente cruéis.

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Disseram-nos que o mundo aprendeu os genocídios que ocorreram até então, incluindo o Holocausto nazista e outras atrocidades da Segunda Guerra Mundial. Ainda assim, parece que as lições jamais foram verdadeiramente absorvidas. Não apenas Israel ostenta seu papel como assassino em massa, como o mundo ocidental continua a exercer o papel que lhe é atribuído em mais essa tragédia histórica. Líderes ocidentais, quando muito, ou aplaudem Israel ou se limitam a protestar polidamente. Enquanto isso, o genocídio continua.

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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