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Desmitificando o Califado: A disciplina secular de poder no pensamento abássida

Autor do livro(s) :Hayrettin Yucesoy
Data de publicação :Agosto de 2023
Editora :Universidade de Columbia
Número de páginas do Livro :392 páginas
ISBN-13 :9780231209410

O secularismo no mundo árabe de fato começou somente no século XX, após a colonização europeia? Historiadores tanto nos países ocidentais quanto no mundo árabe argumentam há décadas – quiçá séculos — que o secularismo é um fenômeno exclusivamente europeu, exportado ao restante do mundo por meio das ações expansionistas imperiais. De acordo com essa alegação, não existe essa coisa de separação entre política e religião e todo o pensamento político do mundo islâmico no passado e no presente é, por definição, islâmico. Hayrettin Yucesoy desmente essa generalização, ao enfatizar que, muito embora a atual corrente de pensamento e prática seculares seja sim um produto de exportação europeia, estadistas mulçulmanos pré-modernos exerciam sua própria modalidade de secularismo.

Disenchanting the Caliphate: The Secular Discipline of Power in Abbasid Political Thought – em tradução livre, Desmitificando o Califado: A disciplina secular de poder no pensamento político abássida – oferece uma janela a um segmento pouco referenciado da forma de fazer política no mundo islâmico entre os séculos VIII e IX.

No período, segundo o autor, duas tradições políticas distintas emergiram. Uma foi chamada de modelo de imamato de governança – “caracterizado pela teologia política dos ulemás”, isto é, estudiosos que transmitem a doutrina islâmica por meio de textos distintos, como aqida (credo), kalam (teologia), fiqh (jurisprudência) e hadiths (os dizeres do Profeta). Este primeiro modelo construiu uma ideia de que liderança e governança devem ter o mesmo rosto, senão similares. O imamato sugere que comunidade islâmica seja encabeçada por um governante legítimo, que detém autoridade tanto secular quanto religiosa, ao mesmo tempo responsável por preservar a shariah (lei religiosa) e gerir as questões da vida mundana. O imamato representa o que muitos analistas e observadores contemporâneos imaginam da governança islâmica pré-moderna.

Não obstante, havia uma tradição alternativa, que assumia funções análogas a um Estado moderno, denominada siyasa. Este modelo se baseava sobretudo em aspectos pragmáticos da governança, de modo cronológico e não atemporal, sem beber de fontes religiosas e das doutrinas dos ulemás. Segundo Yucesoy, muitos ulemás passaram a até mesmo considerar o termo siyasa quase como um palavrão até o século XI.

O conjunto de práticas e diretrizes que tomou o nome de siyasa nasceu da ascensão dos impérios islâmicos e sua incipiente burocracia para além das fronteiras. Embora apreensões sobre conceitos como igualdade, eleições, preservação da doutrina e em como defender e então expandir os limites da fé fossem importantes aos primeiros muçulmanos, no período tardio dos califados omíada e abássida já não seriam mais prioridades.

Junto à burocracia emergente dos impérios omíada e abássida, surgiu uma nova classe de pensadores políticos que assumiram como causa a defesa do modelo siyasa de governança. Um dos protagonistas do livro de Yucesoy é o filósofo Ibn al-Muqaffa – burocrata falante do persa nascido de uma família de gestores a serviço do império sassânida. Sob administração abássida, Ibn al-Muqaffa escreveu um influente livro para exprimir seu ponto de vista sobre uma governança racional, embora centralizada, sob o curioso título Epístola sobre a vida privada do Califa.

A teoria enunciada por Ibn al-Muqaffa, “liberta o califa dos limites ‘jurídicos’ do ulemá ao dá-lo independência”. Além disso, “abre um espaço intelectual para debater a soberania como assunto da adab (etiqueta) e siyasa (governança), em vez da teologia do imamato e da jurisprudência religiosa”. Ibn al-Muqaffa buscou, portanto, afastar a governança islâmica de seu primeiro modelo republicano a um modelo monárquico, embora mais pragmático, sob o qual o califa detinha poderes absolutos e responsabilidades equivalentes – para além do dogma. Segundo o estudo de Yucesoy, o modelo de Ibn al-Muqaffa transcendeu o califa e a elite governante ao status de classes absolutamente distintas da população geral – acima, deste modo, da comunidade dos crentes.

Yucesoy menciona diretamente os dizeres de al-Muqaffa: “Sob o mesmo princípio de que Deus relega matérias de domínio e governança ao juízo racional, Deus concedeu o direito ao juízo racional àqueles que detêm autoridade”. No que se refere à lei, Ibn al-Muqaffa tem muito a dizer: “Seu discurso sobre a lei tem como objetivo criar uma ordem social que deve operar de acordo com as regras e regulações da monarquia”. Essa nova lei imperial não dependia da shariah e Ibn al-Muqaffa insistia ainda em reduzir o poder dos ulemás, os quais lhe sugeriam uma ameaça por meio da insistência na doutrina, sob o risco de alimentar um conflito entre lealdade a Deus e ao califa. Com efeito, a vida mundana estaria integralmente sob gestão do califa e suas prerrogativas dariam forma às leis.

Disenchanting the Caliphate oferece uma janela aos desafios teóricos do poder político no período tardio dos impérios omíada e abássida. O livro pode conter algumas lacunas, dado que se concentra em alguns pensadores específicos e seus textos escassos. O estudo poderia ser ampliado por meio de outras fontes intelectuais, inclusive posteriores a Ibn al-Muqaffa. Um segundo revés é a falta de atenção aos componentes práticos de tais ideias – como os abássidas governaram o povo por meio desse ideário? Todavia, Hayrettin Yucesoy produz um valioso estudo do qual pesquisadores interessados nas raízes do secularismo, para além da Europa, e no pensamento político do mundo islâmico poderão se beneficiar. Seu livro abala pressupostos comuns sobre a política medieval e revitaliza o debate sobre a natureza da ordem política pré-moderna. Certamente, não podemos ignorar Ibn al-Muqaffa.

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