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Três mundos: Memórias de um judeu árabe

Autor do livro(s) :Avi Shlaim
Data de publicação :Junho de 2023
Editora :Oneworld Publications
Número de páginas do Livro :336 páginas
ISBN-13 :978-0861544639

O termo “judeu árabe” costuma ser visto como uma contradição, ao supostamente aglutinar identidades conflitantes no contexto geopolítico do Oriente Médio. Avi Shlaim, historiador anglo-israelense, nascido no Iraque, no entanto, desafia tais preconceitos com sua própria história de vida – publicada como um livro de memórias intitulado Three Worlds: Memoirs of an Arab-Jew (Três mundos: Memórias de um judeu árabe).

Shlaim argumenta que a designação não equivale a uma dicotomia. Ao contrário, corrobora um período na história moderna, anterior ao estabelecimento do Estado de Israel, quando judeus nativos de terras predominantemente árabes – conhecidos como mizrahim – viviam em harmonia com seus vizinhos muçulmanos e cristãos. Suas comunidades tinham um papel considerável em sociedades diversas. Shlaim, por exemplo, cresceu em Bagdá – metrópole conhecida historicamente como “Morada da Paz”.

O título (Três mundos) captura com aptidão a essência da biografia de Shlaim, ao mergulhar em seus anos de formação passados em três países distintos – “da posição de vantagem de um estudioso do conflito árabe-israelense”. Shlaim recorda vividamente de seus privilégios ao crescer em meio a uma família judia iraquiana influente e abastada. Contudo, sua vida mudou drasticamente quando, junto de outros judeus no Iraque e na região, a família se viu pressionada à difícil decisão de migrar ao recém-criado Estado de Israel.

A mudança foi influenciada não apenas pelas graves implicações da Nakba (ou “catástrofe”) de 1948, que resultou no deslocamento de 700 mil palestinos de suas terras ancestrais, mas das pressões combinadas dos emergentes nacionalismos árabe e judaico – com aqueles que compartilhavam ambas as identidades pegos no fogo cruzado. A adolescência de Shlaim foi então marcada por seus estudos em Londres, um mundo à parte de seu Iraque nativo e das lutas por assimilação a uma sociedade predominantemente asquenaze europeia, em uma nova nação de caráter colonial sionista.

Não obstante, Shlaim reitera que a maioria da comunidade judaico-iraquiana em Israel – ele incluso – não se constituía de dedicados ideólogos do sionismo, mentalidade que “gerou um Estado cuja orientação cultural e geopolítica se identificava de maneira quase exclusiva com o Ocidente”.

Conforme Shlaim, o êxodo da comunidade ancestral judaico-iraquiana, com laços profundos com a terra desde os tempos babilônicos e mesmo antes – por meio do patriarca e profeta Abraão – não foi meramente uma migração. O autor sugere que se tratavam de “indivíduos alistados ao projeto sionista” à medida que o movimento eurocêntrico buscava maximizar o número de imigrantes judeus para estabelecer sua supremacia demográfica na Palestina. A princípio, o movimento deu prioridade aos judeus asquenazes nascidos na Europa, ao lhes atribuir então uma posição no topo da nascente pirâmide social – podemos dizer, algo que se mantém até os dias de hoje.

O autor chega ao ponto de apontar que, embora as maiores vítimas do sionismo sejam os palestinos, os judeus das terras árabes estão logo em “segundo lugar” – pressuposto muito raramente dito em voz alta. Para além de tensões emergentes e de “um infame pogrom”, o Iraque – como o restante do moderno Oriente Médio, diferente da Europa – jamais tratou os judeus como uma “questão” que exigia “solução”.

Para Shlaim, o sionismo foi responsável por tamanha mudança. “Ao atribuir ao judaísmo uma dimensão territorial antes inexistente, [o sionismo] acentuou diferenças entre judeus e muçulmanos nos espaços árabes [o que] não apenas converteu os palestinos em refugiados, mas transformou os judeus do Oriente em figuras estranhas em suas próprias terras”.

Uma parte considerável do livro traz à luz a infância do autor na cidade de Bagdá, por meio de um retrato cuidadoso da vida idílica de sua família no Iraque da década de 1940, antes da criação de Israel. O leitor tem acesso às raízes e às ramificações genealógicas do autor, entre as quais parentes remotos mencionados diversas vezes ao longo da obra. De fato, a narrativa mergulha tão profundamente em seus laços familiares que poderíamos muito  bem usufruir de uma árvore genealógica logo antes do prólogo. Esta característica do livro, no entanto, dá uma perspectiva valiosa sobre as dinâmicas de uma comunidade judaico-iraquiana de classe média alta certa vez vibrante e integrada. À medida que a narrativa se desenvolve, o autor referencia diversas vezes reuniões comunitárias e atividades coletivas, como jogos de cartas e outras – o que pode cansar um pouco leitores mais sensíveis.

Ainda assim, um aspecto particularmente marcante – talvez controverso – do livro, que já atraiu atenção e debate nas redes sociais, é a afirmação de Avi Shlaim de possuir “evidências incontestes de envolvimento sionista em ataques terroristas” contra localidades judaicas de Bagdá. Shlaim argumenta que tais atentados foram orquestrados por redes clandestinas de sionistas no país, com intuito de pressionar a hesitante comunidade judaica a colaborar com a Aliyah – ou imigração judaica – a Israel. Tais denúncias, embora não sejam uma novidade absoluta, foram tratadas como uma “bomba” para o público – literal e figurativamente. Sem a chegada dos judeus iraquianos, que constituíram a maioria dos “refugiados” mizrahim, o incipiente Estado sionista “seria mais pobre em termos de formato, demografia, economia e segurança”. Acusações como essa pouco surpreendem a quem conhecem fatos polêmicos como o Caso Lavon e as ações de grupos extremistas, com destaque para as milícias Stern e Irgun, que perpetraram ataques contra civis palestinos e autoridades britânicas às vésperas da criação de Israel.

Como adição valorosa à literatura de formação, em particular sobre a experiência dos judeus árabes – como When We Were Arabs: A Jewish Family’s Forgotten History (Quando éramos árabes: A história esquecida de uma família judaica), biografia de Massoud Hayoun – a obra de Shlaim se mostra cativante e esclarecedora, capaz de retratar a complexa encruzilhada entre identidades distintas, embora irmãs, dentro do contexto do conflito israelo-palestino. Ao fazê-lo, Shlaim oferece ao leitor uma explicação emocionante da discriminação sofrida pelos judeus árabes que, assim como os palestinos, salvo diferenças em método, foram forçados a deixar suas terras para assumir um lugar de marginalização.

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