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Sliman Mansour e a arte palestina no campo de batalha

Artista nascido em Birzeit um ano antes da Nakba já esteve presente na Bienal de São Paulo de 2002 e ganhou prêmio da Unesco
Camel of Hardship (جمل المحامل), oil on canvas (1973) retrata idoso palestino vestido de forma tradicional, carregando Jerusalém nas costas [Reprodução]

Nascido há 76 anos em uma das poucas cidades palestinas cristãs que restaram, localizada no centro da Cisjordânia, Sliman Mansour é um proeminente artista palestino e destaque entre os seus pares contemporâneos. Começou a desenhar muito jovem e, mais tarde, um tutor alemão em um internato em Belém notou seu talento, incentivando o jovem a se aprofundar na pintura e a inscrever seus trabalhos em concursos de arte.

Conhecido como “o artista da Intifada”, Mansour esteve no Brasil em 2002, quando participou da 25ª edição da Bienal de São Paulo, e foi um dos ganhadores do Prêmio Unesco-Sharjah para a Cultura Árabe, em 2019. O artista plástico, autor, escultor e cartunista também recebeu os prêmios da Bienal do Cairo em 1998 e o Prêmio Palestino de Artes Visuais em 1998.

Mansour utiliza o pincel e o fazer artístico como recurso para a transformação revolucionária da Palestina. Em suas obras, ele carrega a bandeira de um povo colonizado, resistente e envolvido numa ocupação militar sem tréguas e regras. Sua arte é permeada por essa realidade, enfatizando a beleza e riqueza das cores e criando um conceito de trabalhar com o barro usando terra palestina e com o produto passou a esculpir e pintar.

O artista começou a utilizar essa matéria prima em 1987, durante a Primeira Intifada. A escolha do peculiar material veio da necessidade de resgate da ancestralidade feminina, que utilizavam utensílios de barro em casa. O uso do barro palestino permitiu que ele capturasse a essência das raízes palestinas, contrastando com a fragmentação do cenário político e geográfico – ecoada nas rachaduras que se desenham na lama à medida que seca. Outros materiais naturais são utilizados, como café e feno.

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Assim, ele utiliza a arte como parte da resistência. O pincel é a sua arma e estabelece a relação entre povo e terra, entre história e cultura no seu trabalho artístico. Mansour ambiciona contar a história palestina ainda viva, enquanto cria arte dos acontecimentos. Suas obras mostram um artista que se apega a um desejo de vida e autodeterminação do seu país, e cidades que são verdadeiras prisões a céu aberto, semelhantes a guetos de Varsóvia. Pensando em cada detalhe da experiência artística em vez de desenhar a terra, resolveu desenhar  com  a terra. Nas exposições, as pessoas sentem o seu trabalho – sentem a herança palestina, pelo toque, cheiro, com os sentidos.

Opera Mundi: como sua arte está ligada ao processo de libertação do povo palestino?

Sliman Mansour: o principal desafio da arte palestina decorre da persistência da negação da existência do povo palestino por parte de Israel e de grande parte do mundo ocidental, o que torna a expressão da identidade palestina uma questão fundamental. Dada a natureza abstrata da identidade, a busca por símbolos visuais se tornou imperativa, com inspiração em diversas fontes. A arte regional antiga, a arte islâmica com foco na caligrafia e a arte popular, incluindo trajes, bordados, arquitetura tradicional e vida nos vilarejos, contribuíram para a rica tapeçaria da expressão artística palestina.

A paisagem, com elementos simbólicos, como laranjeiras que significam a terra ocupada em 1948 e oliveiras que representam a ocupação de 1967, teve um papel fundamental. A arte internacional que aborda a libertação também forneceu uma inspiração valiosa, contribuindo para o desenvolvimento da identidade palestina e aumentando a conscientização para a libertação da ocupação israelense. Apesar do reconhecimento global após os acordos de Oslo, o reconhecimento fica aquém do que se espera dos palestinos como seres humanos plenos, merecedores de libertação e de uma vida digna. O papel atual, conforme percebido, envolve desafiar essa atitude por meio de várias formas de arte e cultura, abrangendo literatura, cinema, teatro, música e muito mais.

Você poderia nos contar um pouco sobre a situação do âmbito artístico em Gaza e no restante da Palestina?

Na Cisjordânia, existe um modesto mercado de arte que desempenha um papel duplo, não apenas atendendo aos artistas locais, mas também oferecendo uma conexão com os artistas de Gaza. A região conta com três galerias em Ramallah e Belém. Além disso, o cenário artístico é enriquecido pela presença de um Museu de Arte na Universidade de Birzeit e de uma instituição importante, o Museu Palestino, também situado em Birzeit. O Museu Mahmoud Darwish, em Ramallah, contribui ainda mais para a cultura da Cisjordânia.

Enquanto isso, em Gaza, um movimento artístico vibrante prosperou, com diversos artistas ativamente envolvidos no processo criativo. Coletivos de arte colaboram, exibindo seus trabalhos, muitas vezes em suas respectivas sedes. Infelizmente, a comunidade artística de Gaza sofreu um revés com o bombardeio do Centro de Artes e Ofícios “Village” há alguns anos. Apesar dos desafios, ferramentas contemporâneas como fotografia, vídeo, montagem e performance tornaram-se parte integrante do trabalho de muitos artistas da região.

Encontrar maneiras de driblar a censura é algo com que os artistas palestinos estão familiarizados há muito tempo. Como a melancia se tornou um símbolo da identidade e da resistência palestinas?

Durante as tumultuadas décadas de 1970 e 1980, as autoridades israelenses demonstraram maior sensibilidade em relação às obras de arte que abordavam a identidade e a ocupação, o que resultou no confisco de diversas obras de artistas palestinos. Esses artistas frequentemente empregavam símbolos para transmitir mensagens sutis, e os soldados muitas vezes não conseguiam entender seu significado. Um episódio marcante envolve uma exposição em 1980 na então exclusiva Gallery 79: após a inauguração, os soldados esvaziaram a galeria com violência, trancaram suas portas e pegaram as chaves. Um mês depois, o diretor da galeria, Issam Bader, e dois artistas, incluindo o expositor, foram convocados por um oficial que, em uma discussão surreal sobre “boa arte”, sugeriu pintar flores e figuras nuas semelhantes às dos antigos mestres. Curiosamente, duas ordens foram emitidas: obras de arte não poderiam ser exibidas nos territórios ocupados sem autorização da censura militar, e pintar em vermelho, verde, preto e branco era proibido. Quando questionado sobre uma flor pintada nessas cores, a resposta irritada do oficial ressaltou o absurdo das restrições. As chaves foram devolvidas, mas ao reabrir a galeria, três pinturas estavam misteriosamente faltando. Esse incidente levou o artista a informar os repórteres, artistas palestinos e aliados internacionais, inclusive artistas israelenses progressistas. Em 1998, Khaled Hourani foi o pioneiro no uso da melancia como substituto simbólico da bandeira palestina.

Qual é a sua mensagem para a próxima geração de artistas palestinos?

Enfatizo a importância de um senso de pertencimento e de um foco na sociedade como público principal. Embora a arte individualmente possa chegar às galerias europeias ou norte-americanas, ela corre o risco de distanciar os artistas de seu povo, o artista não pode esquecer do seu povo.

O que me comoveu nas artes visuais palestinas é que os artistas retratam suas tradições de pintura inspiradas no passado antigo e nas tradições orais e narrativas culturais ligadas à vida na Palestina. Como artista visual e palestino, como você vê o impacto das artes no conflito atual?

A arte, como uma linguagem internacional, serve como um meio poderoso e pacífico de transmitir a narrativa palestina ao mundo, lançando luz sobre suas lutas e a ocupação permanente.

Publicado originalmente em Opera Mundi

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