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Colocar ‘Visão 2030’ acima dos direitos humanos pode ser uma parte muito sinistra do plano saudita

Logotipo da Visão Saudita 2030 [wikimedia]

Quando foi confirmado pelo Tony Blair Institute for Global Change na semana passada que havia continuado sua parceria de £ 9 milhões com a Arábia Saudita, mesmo após o assassinato do jornalista Jamal Khashoggi em 2018 no consulado saudita em Istambul, houve pouca surpresa da mídia e do público britânico. Uma declaração do gabinete de Blair confirmou que ele “tinha a opinião na época e é fortemente de opinião agora que o programa de mudança social e econômica em curso na Arábia Saudita é de imensa e positiva importância para a região e para o mundo”.

Essa mudança, de acordo com o ex-primeiro-ministro, faz parte de um quadro maior que deve ser priorizado em relação às questões de direitos humanos. Por que? “O relacionamento com a Arábia Saudita é de importância estratégica crítica para o Ocidente e, portanto, é justificado permanecer engajado lá.”

A parceria, iniciada em 2017, vê o instituto de Blair aconselhando e auxiliando o reino na implementação de seu grande plano “Visão 2030”. Isso visa tirar o estado do Golfo de sua dependência das receitas do petróleo e torná-lo um centro econômico e de negócios internacional, um bastião de energia verde e uma sociedade desenvolvida por uma reforma social e religiosa radical. Uma reforma política da monarquia absoluta não parece fazer parte do plano.

É fácil pensar que a decisão de Blair de continuar a parceria é simplesmente sobre dinheiro e aqueles doces 9 milhões de libras. Ou que ele está exibindo é o mesmo desrespeito pelos direitos humanos de que foi acusado quando levou a Grã-Bretanha à invasão do Iraque liderada pelos Estados Unidos em 2003.

Embora esses possam ser fatores na decisão, eles certamente não são motivos principais. De qualquer forma, seu instituto já arrecada milhões, e é duvidoso que Blair esteja procurando ativamente pela próxima violação dos direitos humanos.

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O que determinou sua decisão, porém, foram dois pontos que ele considera essenciais. A primeira é manter a aliança entre a Arábia Saudita e o Ocidente, por razões óbvias: dissuadir as ambições iranianas, normalizar os laços com Israel e combater o “islamismo”. Estes não são novos e correspondem aos interesses dos Estados Unidos e do Ocidente. O segundo ponto é mais curioso: o esforço para garantir a conclusão do projeto “Visão 2030” da Arábia Saudita, em linha com um caminho global mais amplo para a transformação tecnológica, digital, social, ambiental e fiscal.

“Visão 2030” foi aclamado como mais do que simplesmente uma meta ou conquista da política saudita, mas sim uma que contribui para os objetivos para os quais a comunidade internacional está sendo direcionada, alinhando-a com aqueles como a Agenda 2030 da ONU e impressionando os investidores com a visão e desempenho ousado do reino.

Talvez o ex-presidente e CEO da Dow Chemical Company, Andrew Liveris, tenha colocado melhor quando comentou na conferência de Davos em 2017 que a Arábia Saudita e suas reformas propostas na “Visão 2030” são “a maior história nunca contada”. Ele proclamou, do ponto de vista de negócios e investimentos, que “precisamos de países como a Arábia Saudita para liderar o caminho neste século moderno, para implementar as reformas estruturais”.

Deve-se notar que as reformas sauditas não são apenas financeiras. Um relatório publicado pelo instituto de Blair elogiou a “Visão;’ e agendas relacionadas por “fazer progressos substanciais para reduzir a influência das autoridades religiosas, promover o papel das mulheres e investir em inovação para se alinhar com valores e prioridades em mudança”.

Citando o declínio relatado na religiosidade aberta entre os sauditas e outras pessoas na região, afirmou que é claro que eles “querem um governo secular e pragmático, não uma liderança ligada a ideologias islâmicas antiquadas e destrutivas… períodos de pureza islâmica estão longe de ser a principal queixa que preocupa o povo da região”.

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Blair e seu instituto estão empenhados em apoiar “governos seculares e pragmáticos”, nos quais não falta o Oriente Médio. Houve uma abundância de tais governos ao longo dos anos pós-coloniais que – coincidentemente quando a religião foi removida da vida pública – tenderam a desconsiderar os direitos humanos e a ser pragmáticos até o âmago. Afinal, que forma maior de pragmatismo existe do que silenciar seus críticos matando-os ou prendendo alguém por décadas simplesmente por causa de um comentário nas redes sociais?

A principal diferença neste caso é que a inovação tecnológica será uma parte importante da equação, já que o reino visa notoriamente adotar uma ampla gama de tecnologias para todos os propósitos possíveis. De hologramas, drones de helicóptero, IDs digitais e cidades inteligentes, aproveitando a inteligência artificial, Riyadh quer fazer uso de tudo isso buscando investimentos e cooperação de empresas em todo o mundo, especialmente em seu projeto futurista de megacidade NEOM.

Mas é apenas o dinheiro e as oportunidades de investimento que influenciam o apoio a projetos como o Vision 2030, ou há um viés ideológico nisso? Da perspectiva de Blair, pode haver.

É fácil imaginar o ex-primeiro-ministro como um inimigo declarado do socialismo. Ele mudou a constituição do Partido Trabalhista para remover seu compromisso com a nacionalização, se opôs a um de seus sucessores como líder trabalhista, Jeremy Corbyn, por causa de suas tendências abertamente socialistas e aconselhou o atual líder trabalhista Kier Starmer a “rejeitar o wakeismo” e continuar a guerra contra o socialismo. Isso deixa pouco espaço para dúvidas sobre seus pontos de vista. Além disso, muitos esquecem que Blair já foi um membro proeminente da Fabian Society, a organização da intelligentsia socialista fundada em 1884, cujo objetivo continua sendo o avanço do socialismo por meio de reformas graduais, e não da revolução.

De uma perspectiva fabiana, a maneira de implementar uma visão de mundo socialista não é se opor ao capitalismo, mas cooperar com ele ou mesmo cooptá-lo. Tal visão levou os estados de bem-estar social capitalistas em toda a Europa, especialmente na Escandinávia, a incorporar o ideal do “social-democrata” ou do “socialista democrático”.

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Isso tomou a forma do conceito de “Terceira Via” no caso de Blair, assim como aconteceu com outras figuras políticas importantes da época, como o chanceler alemão Gerhard Schroeder e o presidente dos Estados Unidos Bill Clinton. O ex-primeiro-ministro do Canadá, Pierre Trudeau, foi uma figura envolvida no desenvolvimento do conceito após a expansão da Fabian Society para a América do Norte. A “nova esquerda” e os “novos democratas” devem sua existência à ideia.

A suposta narrativa é que as elites culturais e intelectuais assumem a responsabilidade pela engenharia social e influência nas políticas governamentais, muitas vezes por meio de esquemas de planejamento central e disseminação de ideias por meio de membros fabianos que são proeminentes no governo, instituições e até agências de inteligência. Sob essa luz, os socialistas fabianos e membros influentes no Ocidente aparentemente não se opunham ao comunismo em si, mas se opunham à “sovietização” como um rival geopolítico e ideológico.

Os socialistas fabianos, é claro, há muito tempo são objeto de teorias da conspiração, alegando que fazem parte de um plano de longo prazo para transformar o Ocidente – e particularmente o establishment anglo-americano – em um sistema comunista por meio de subversão e infiltração. O brasão da Fabian Society mostrando um lobo em pele de carneiro não ajudou a dissipar tais preocupações. Independentemente do discurso em torno disso, o histórico de Blair como um fabiano proeminente o destaca como um apoiador nada surpreendente da Visão 2030 da Arábia Saudita, porque contribui diretamente para o atual descendente da visão de mundo da Terceira Via: o capitalismo de partes interessadas.

Proposto oficialmente pelo Fórum Econômico Mundial (WEF, na sigla usual em inglês), seu fundador e presidente, Klaus Schwab, definiu o capitalismo de partes interessadas como aquele que “posiciona as empresas privadas como fiduciárias da sociedade e é claramente a melhor resposta aos desafios sociais e ambientais de hoje”. Quando veio a pandemia do Covid-19, Schwab anunciou que era a oportunidade perfeita para impulsionar essa forma de capitalismo e sua parceria público-privada, insistindo que poderíamos “emergir desta crise como um mundo melhor, se agirmos rápida e conjuntamente. ”

Com a Arábia Saudita já embarcando em sua visão nacional, o reino acabou sendo o condutor perfeito de grande parte do Grande Reset: a Quarta Revolução Industrial. Intencionalmente e abertamente projetado, ao contrário das encarnações anteriores, isso é definido para “apoiar o bem público, especialmente abordando os desafios sociais e de saúde” por meio de inovações tecnológicas aproveitadas por Riad, parecendo fazer do estado do Golfo seu centro ideal e campo de testes.

O Blair Institute, portanto, é um conselheiro lógico para as autoridades sauditas, especialmente quando vemos ainda mais ligações entre suas afiliadas e a Vision 2030. Um dos principais financiadores do instituto é a Larry Ellison Foundation, que – junto com a empresa de Ellison, Oracle – auxilia Arábia Saudita com sua infraestrutura digital e sistema de nuvem. Ao anunciar planos em fevereiro para abrir uma terceira região de nuvem pública no reino como parte de um investimento planejado de US$ 1,5 bilhão, foi revelado que ela será localizada em NEOM.

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Não é apenas a localização que contribui para “ Visão 2030”. Há também o potencial para a expansão dos recursos de nuvem do reino para formar a base para parâmetros como seu sistema de identidade digital, que levantou preocupações sobre o armazenamento e compartilhamento generalizado de dados pessoais e o possível uso disso para impor maior controle sobre os cidadãos e residentes. A Arábia Saudita está, é claro, assumindo o papel para o qual foi escolhida, reiterando seu compromisso de construir pontes entre as divisões geopolíticas e econômicas na reunião do Fórum Econômico Mundial em Davos em janeiro deste ano.

Talvez Tony Blair e seu Instituto estejam certos em ajudar o reino e sua Visão 2030 como parte do quadro maior, e talvez a visão de mundo fabiana esteja correta. Ainda temos que ver. O que podemos ter certeza, porém, é que o apoio de Blair tem pouco a ver com direitos humanos e – apesar do assassinato de Khashoggi e do potencial para uma ditadura digital – tudo isso pode ser uma parte muito sinistra do plano.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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