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O caminho de volta à terra dos laranjais

Anni Hover Ghassan Kanafani e sua esposa Anni Hover [Foto de acervo via Milan Kundera in Justice for Palestine NZ]

A solidariedade entre os povos requer laços, compreensão, empatia e reconhecimento de experiências, mesmo que distantes. A arte, a literatura, memórias e testemunhos são fundamentais para a construção do vínculo afetivo e solidário entre pessoas que não necessariamente se conhecem no tempo presente ou se conectaram em vida. Mas que se tornam próximas pela percepção das jornadas em comum.

Ghassan Kanafani é uma dessas fontes geradoras da empatia e da solidariedade com o povo palestino e com os povos que lutam por libertação frente ao assalto colonial. Ele consegue transmitir a percepção do sofrimento da terra usurpada ao emprestar-lhe o mesmo olhar do menino que observava pelo caminho forçado em direção ao exílio, amontoado no caminhão com a família expulsa pela Nakba,  os laranjais da infância deixada abruptamente para trás.

“Quando chegamos em Sayda, daquela tarde em diante, nós nos tornamos refugiados… A estrada nos engoliu.”

(A Terra das Laranjas Tristes, 1963)

Aos dezesseis anos, o futuro escritor palestino  já detinha o olhar compassivo do adulto que percebeu, como professor da UNRWA,  o sono que se abatia em aula sobre as crianças já esgotadas por dias extenuantes de trabalho. Triste ainda era a orientação curricular que pedia às crianças desenhos de frutas que ela nunca viram ou comeram – como uma maça ou banana. Com Kanafani, pelo menos, podiam deixar a tortura de lado e desenhar  sua realidade, as coisas que viam ao seu redor, no campo de refugiados.

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Esses registros mostram um escritor que teve a vida toda relacionada com a resistência, embora não fosse simplesmente um ativista escrevendo sobre a causa palestina, mas um dos mais importantes expoentes da literatura de resistência.

A terra palestina está viva nas obras de Kanafani por toda parte, na paisagem, nas videiras, no som dos passarinhos, na personificação do deserto, e no vínculo carregado e cultivado no refúgio.

Na tentativa de apagamento, aestátua do romancista palestino Ghassan Kanafani foi demolida pelas autoridades israelenses em 17 de dezembro de 2018 [Arab48]

Ler kanafani transporta leitores para a compreensão de um século colonial e colonizador de cara contemporânea, através de uma Palestina resguardada na memória de perda dos que partiram  e do cotidiano precário de figuras esmagadas pela colonização, mas cujas vidas são sua própria narrativa.

A desagregação da existência palestina refugiada,  Kanafani consegue mostrar através do de personagens como Mariam grávida, da obra “O Que Lhes Restou”, impactando a vida ao redor e a sua própria, e sobre a qual pesam as cobranças pelos valores desestruturados. O escritor está atento ao controle do corpo da mulher pela cultura patriarcal que acompanha o exílio.

“Quando retrato a miséria do palestino, estou, na verdade, apresentando-o como um símbolo de miséria no mundo todo”, disse ele próprio sobre seus trabalhos, lembrando que, no começo, escrevia sobre a Palestina como uma causa em si e de si mesma. Mas depois passou a perceber a Palestina como “um símbolo da humanidade”.

Kanafani foi assumidamente um militante de esquerda, um revolucionário marxista. Mas é interessante o modo como ele indica o poder da arte para o despertar das consciências e testemunha sua própria trajetória política originada no fato de ser escritor. Ela parte, não da militância como um caminho indutor de sua escrita literária, mas da literatura como um caminho que o conduziu à compreensão de seu papel na resistência. Sobre isso, ele diz:

“Minha posição política brota de meu ser romancista. No que me diz respeito, a política e o romance são um caso indivisível e posso afirmar categoricamente que me comprometi politicamente porque sou romancista, não o contrário. Comecei a escrever a história da minha vida palestina antes de encontrar uma posição política clara ou ingressar em qualquer organização”.

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Em apenas uma década de seu mais intensivo trabalho literário, concentrado nos 1960, deixou uma obra diversificada em contos, ensaios e romances, além de desenhos, pinturas e peças teatrais, e do contínuo labor jornalístico, como editor de periódicos nos lugares onde viveu – Jordânia, Líbano, Kwaiti. No início dos anos 70, ele tornou-se o porta-voz oficial da Frente Popular para a Libertação da Palestina (FPLP), editando o jornal Al-Hadaf, da organização.

Parte do que Kanafani produziu não pode ser concluído. Ele morreu precocemente,  assassinado em 1972, aos 36 anos, juntamente com a sobrinha de apenas 17 anos. Uma bomba foi instalada em seu carro pelo Mossad.

O obituário do jornal Lebanese Daily Star o descreveu como “um comandante que nunca disparou um tiro, cuja arma era uma caneta esferográfica, e a sua arena eram as páginas dos jornais”.

Capa do Livro Ghassan Kanafani – Anticolonialismo e alternativa socialista na Palestina, Editora Fedayin, em dezembro de 2022

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Resgatar a vida e obra de Kanafani para o público brasileiro significa possibilitar esse acesso a uma Palestina que resiste na memória e na cultura de milhões de refugiados e descendentes, e que se enriquece da arte literária de um dos mais atentos narradores desse legado fundamental para a continuidade da resistência.

A dor do refúgio não apaga a Palestina deixada, mas amplia a perspectiva do seu resgate, ao ser compartilhada. Mais do que falar aos palestinos, a obra de Kanafani produz empatia, identificação e solidariedade dos que carregam outras experiências de um passado colonial e seus legados. Alimenta o desejo dos leitores de ajudar seus personagens a trilharem o caminho de casa, o direito do retorno até uma terra feliz com seus laranjais.

Artigo publicado no livro Ghassan Kanafani – Anticolonialismo e alternativa socialista na Palestina, Editora Fedayin, 2022

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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Palestina: quatro mil anos de história
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