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América Latina precisa entender e reconhecer: o que acontece na Palestina é apartheid

Repressão cotidiana aos palestinos. Soldados de Israel em rua de Belém, Cisjordância, em 30 de setembro de 2022 [Wisam Hashlamoun/Anadolu]

Embora corretamente condene a expansão de assentamentos sionistas na Palestina ocupada, em sua terceira nota desde que o governo Lula assumiu, o Brasil incorre na mesma limitação e incompreensão da realidade: repete a cantilena de “ambos os lados” em relação à violência brutal a que são submetidos os palestinos na contínua Nakba (catástrofe desde a formação do Estado racista de Israel em 15 de maio de 1948 mediante limpeza étnica planejada).

Desta vez, a posição é apresentada em “Comunicado conjunto dos governos da Argentina, Brasil, Chile e México sobre a expansão de assentamentos israelenses na Cisjordânia”, datado de 17 de fevereiro. O tom similar às notas anteriores revela o protagonismo e a liderança do Brasil. Algo que já é amplamente conhecido e teria condições de assegurar o passo efetivo de governos de toda a região: reconhecerem o regime institucionalizado de apartheid israelense na Palestina e, então, suspenderem todos os acordos com o Estado sionista – a começar, de imediato, promovendo embargo militar latino-americano.

Anistia rotula Israel como Estado de apartheid [Sabaaneh/Monitor do Oriente Médio]

Não há qualquer dúvida quanto à diferença do governo Lula – que retoma a diplomacia tradicional brasileira – e o anterior do genocida Bolsonaro, de extrema direita, aliado explícito do sionismo na cadeira do Planalto. Importante condenar a “medida unilateral” israelense de “legalizar nove postos avançados (‘outposts’) e construir dez mil casas em assentamentos existentes na Cisjordânia”. Importante denunciar que se trata de graves violações do Direito Internacional.

Não obstante, fica por aí. A partir de então iguala em responsabilidades, mais uma vez, opressor (Israel) e oprimido (palestinos), insistindo que isso compromete a “viabilidade” da “solução de dois estados”. Ou seja, em 22% do território histórico da Palestina, a parte remanescente após a Nakba de 1948 e ocupada em 1967 – Gaza, Cisjordânia e Cidade Velha de Jerusalém.

A brutal expansão colonial sionista e limpeza étnica há mais de 75 anos já enterrou essa tal “solução”, injusta desde sempre por não contemplar a totalidade do povo palestino. Deixa de fora, na verdade, a maioria. Metade dos 13 milhões que estão na diáspora ou no refúgio, além de cerca de 2 milhões que vivem nos territórios ocupados em 1948 (“Israel”), como cidadãos de segunda ou terceira categoria, submetidos a aproximadamente 65 leis racistas.

LEIA: Linha do tempo: leis e medidas anti-palestinas de Israel desde 1948

Não bastante a legalização internacional da usurpação de terras à força e colonização, o reconhecimento de um miniestado para os palestinos (nos 22%), tão insistentemente propalado pela Organização das Nações Unidas (ONU), a gerente da ocupação Autoridade Palestina (AP) e defendido por mais de 190 países ao redor do mundo – inclusive Brasil, Argentina, México e Chile –, parece uma espécie de zona de conforto internacional, diante do “incômodo” que se tornou a longa ocupação na Palestina e as ações sanguinárias cada vez mais explícitas do enclave militar do imperialismo estadunidense (“Israel”).

Uma noite em Gaza [MEMO]

Exceto para a ultradireita, a retórica de defesa de direitos humanos universais exige uma resposta formal, e esta já está na ponta da língua – e das canetas da diplomacia tradicional: “solução de dois estados”. Muito cômodo para governos cúmplices, que seguem a negociar tecnologias militares e outras com o Estado de Israel às custas de vidas palestinas, sustentando a mesma barbárie que parcialmente se apressam em condenar – sem, vale reiterar, moverem-se de fato na direção de parar de financiar a contínua Nakba.

Em meio à opressão nacional, há distintas posições no seio da sociedade palestina, que não deve ser vista como um bloco homogêneo. Há interesses e questões de classe, há sim rendição e subserviência de lideranças tradicionais, como da AP em sua cooperação de segurança com Israel (por isso mesmo, amplamente desacreditada).

Para além, entretanto, não se deve ignorar que há pessoas comuns que pensam que o possível hoje é não mais que “dois estados”, num sentimento legítimo de obter algum alívio em meio a sua terrível situação, que também expressa compreensível cansaço e derrota, sobretudo na Cisjordânia e em Gaza (parte dos 22%). Nesses dois locais, diante da violência brutal, ainda é majoritária essa visão, porém começa a haver um aumento incomum daqueles que defendem um único estado palestino laico, livre e democrático, não racista. É o que vem apontando o Palestinian Center for Policy and Survey Research (PSR, Centro Palestino de Política e Pesquisa, em português), segundo o qual mais de 1/3 do povo palestino nesses territórios já não acredita mais na tal “solução de dois estados”.

LEIA: Oslo, a paz dos cemitérios para a contínua Nakba

Pensar nesse miniestado é uma ilusão. Como dizia o revolucionário palestino marxista Ghasan Kanafani (1936-1972), seria uma negociação “entre a corda e o pescoço”. Ele ensinou lá atrás uma lição que se demonstrou na prática: não tem interlocução possível com o colonizador; o que se tem é resistência, o único árduo caminho para haver justiça.

Passo efetivo

Ao invés de uma cantilena inefetiva, portanto, é necessário que a América Latina dê, afinal, passo sólido já mencionado: reconheça o regime de apartheid, como detalhadamente explicitado em relatórios de comissões das Nações Unidas e de organizações internacionais como Anistia Internacional, Human Rights Watch e da israelense de direitos humanos BT´Selem. E assim, atue no mesmo sentido do boicote que o mundo trilhou em relação ao regime de apartheid na África do Sul, o que ajudou a isolá-lo e, por fim, derrubá-lo nos anos 1990.

É o que dezenas de organizações da comunidade árabe-palestina e brasileiras, além de intelectuais, pedem em documento enviado a grupos de trabalho da equipe de transição para o atual governo Lula.

Até que se compreenda a urgência desse passo, o potencial nacional de articular as posições e ações de governos latino-americanos rumo à solidariedade efetiva – que faça diferença na vida terrível a que estão submetidos os palestinos –, segue infelizmente sendo mal aproveitado. Vozes palestinas precisam ser ouvidas. É questão de vida ou morte.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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Palestina: quatro mil anos de história
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