Perfil: Gamal Abdel Nasser (15 de janeiro de 1918 – 28 de setembro de 1970)

Cento e cinco anos após o nascimento de Nasser, o legado do célebre nacionalista árabe ainda está presente no Egito.

Em uma noite quente do fim de julho de 1956, o presidente egípcio Gamal Abdel Nasser falou a uma multidão de 200 mil pessoas da cidade setentrional de Alexandria. “Trata-se de atitude de enorme arrogância sobre outros povos. Nós não seremos manipulados! Hoje, nós nos livramos do que aconteceu no passado”. Nasser prometeu a seu povo dar fim ao imperialismo britânico, uma força que assombrava o país por cerca de quatro décadas.

Foi quando Nasser voltou sua atenção ao Canal de Suez. Escondido em seu discurso, difundido por rádio, há uma ordem codificada – a senha, Ferdinand de Lesseps, arquiteto da via marítima. Ao escutar seu nome, o exército deveria invadir os escritórios da Companhia do Canal de Suez e dar início ao processo de nacionalização.

Multidões carregaram Nasser nos ombros ao Palácio Presidencial. De volta a Londres, o humor era outro. O canal levava petróleo ao Ocidente, controlado pelas forças coloniais da Inglaterra e da França, resultando em dezenas de milhões de dólares em ganhos anuais. O Egito não recebia um tostão, muito embora 125 mil homens tenham morrido ao construi-lo.

Em conversa com Clifton Daniel para o New York Times, Nasser explicou sua decisão de avançar na nacionalização de Suez: a atitude ocidental o ofendeu, sobretudo ao lhe negar empréstimos para construir a barragem de Assuã. O projeto para a gigantesca usina hidroelétrica levaria luz a todo país e deveria mitigar os impactos da pobreza no Egito. De fato, mais tarde, a obra passou a ser vista como joia da coroa de sua presidência.

Dispensar a ingerência externa era o forte de Nasser. O presidente preparou o terreno para sua agenda anti-imperialista desde 23 de julho de 1952, quando liderou um grupo de soldados que se tornou conhecido como Oficiais Livres, responsável por destituir a monarquia subalterna ao Reino Unido e estabelecer a república. Este episódio histórico foi exaltado por apoiadores como “revolução”. Segundo a biografia de sua esposa, nos anos que precederam este evento, Nasser guardou armas em casa “usadas contra os britânicos em cidades como Suez”.

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Voltemos cerca de quatro anos. Em 1948, Nasser viajou à Palestina para lutar na guerra árabe-israelense – que incidiu na Nakba, em árabe, “catástrofe”, como é chamada a criação do Estado de Israel, mediante limpeza étnica. Muitos dizem que o golpe promovido pelos Oficiais Livres se deu devido à frustração de Nasser diante da derrota árabe na ocasião.

Em todo o Oriente Médio, o sentimento anticolonial de Nasser angariou apoio. Após Muammar Gaddafi depor o rei pró-ocidente da Líbia, expulsar 25 mil colonos italianos do país e destituir as bases militares dos Estados Unidos e do Reino Unido, o líder nacional rebatizou uma catedral na cidade de Trípoli como Mesquita Gamal Abdel Nasser. Segundo relatos, Gaddafi desmaiou duas vezes no funeral de Nasser.

As apreensões de Nasser de fato se estendiam muito além das fronteiras do Egito, ao torná-lo popular tanto em casa quanto no exterior. Nasser acreditava que a libertação da Palestina era um dever dos árabes e apoiou a luta argelina por independência da brutal colonização francesa. Em 1958, o Movimento de Oficiais Livres do Iraque também derrubou a monarquia, enquanto revolucionários libaneses bebiam das ideias de Nasser. Embora por um período brevíssimo, em 1958, Egito e Síria se juntaram para formar a República Árabe Unida, sob presidência de Nasser.

Em casa, conforme os relatos, Nasser era adorado. Em um retrato em preto e branco de Tahia Abdel Nasser, sua esposa, ela sorri para a câmera, com um vestido de verão, decorado com contas, luvas combinando e um chapéu branco. Dizem que aquela mesma foto repousava sobre a escrivaninha do líder nacional egípcio. Em entrevista concedida à Universidade Americana do Cairo, Tahia Khalid Abdel Nasser, neta do casal, reiterou que a esposa sempre estava ao lado do presidente. Como pai, diziam ser gentil e amável.

Relatos e registros reforçam o carisma e a imponência de Nasser, assim como sua desenvoltura para falar em público. Nasser gostava de ir ao cinema e assistir filmes em casa, tirar fotografias, gravar seus próprios filmes e ouvir as canções de Umm Kulthum. Sua presidência é considerada como “era de ouro” da cultura no país.

Parte do apelo de Nasser se dava a sua imagem de homem do povo, de raízes modestas. Nasser nasceu em 15 de janeiro de 1918, filho de um funcionário dos correios, na aldeia de Beni Murr, no Delta do Nilo. Talvez por isso, Nasser prometeu tanto melhorar a vida do “homem comum”, ao introduzir reforma agrária, programas de ensino público e melhoras consideráveis no acesso a saúde, emprego e habitação. Nasser construiu escolas e projetos de saneamento. Como disse um homem comum: “Erga a cabeça, meu irmão, o fim do colonialismo chegou”.

O conhecimento geral lembra de Nasser pela nacionalização de Suez, assim como por seu maior fracasso: a derrota da aliança árabe na guerra de 1967 pela libertação da Palestina. Em apenas seis dias, Israel capturou a Península do Sinai e a Faixa de Gaza do Egito, as Colinas de Golã da Síria e a Cisjordânia e Jerusalém Oriental da tutela jordaniana. Nos anos seguintes, o regime de ocupação sionista assentou ilegalmente milhares de colonos nas terras expropriadas.

Em apenas seis dias, o sonho de panarabismo de Nasser foi esmagado. Ainda assim, em notável testemunho a sua popularidade, os egípcios tomaram as ruas para demonstrar apoio a seu líder e Nasser assentiu em permanecer no poder. Apesar da derrota, muitos consideram Nasser, até hoje, como um campeão histórico da causa palestina.

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Para além das descrições grandiosas e relatos hegemônicos sobre Nasser, vale recordar que, no entanto, era também um líder autoritário que ressentia a oposição e a divergência. Em vídeo, o presidente escarneceu do líder da Irmandade Muçulmana, por sugerir a obrigatoriedade do véu às mulheres. No entanto, embora pouco documentado, o próprio Nasser foi certa vez membro do grupo – ou ao menos ligado intimamente ao movimento. A relação amargou com os anos.

Em 1954, Nasser acusou a Irmandade Muçulmana de tentar executá-lo enquanto discursava ao povo na cidade de Alexandria. Alguns alegam que esta tentativa de assassinato foi, na verdade, ensaiada, para servir de pretexto à subsequente repressão ao grupo islâmico. Em uma série de eventos – que ecoam o contexto político do Egito contemporâneo –, Nasser indiciou o líder do movimento Hassan Al-Hudaybi e muitos adeptos foram encarcerados e executados.

Nasser não ressentia apenas a Irmandade Muçulmana. O Partido Wafd foi esmagado e, de fato, a imprensa independente, eleições abertas e liberdades civis foram praticamente inexistentes durante seu governo.

Nasser morreu de um ataque cardíaco em 28 de setembro de 1970, aos 52 anos, após governar o Egito por mais de dez anos. Cinco milhões de pessoas participaram de seu funeral, que durou quarenta dias.

Cinquenta e dois anos após sua morte, Gamal Abdel Nasser é ainda influente no Oriente Médio e Norte da África. Durante a revolução de fevereiro de 2011, manifestantes carregaram retratos do líder nacional e demandas por “pão, liberdade e justiça”, algo remanescente das reformas introduzidas por seu governo. Nasser guarda a contradição de certas figuras históricas: instilou aspirações por um Egito independente, livre de ingerências externas, mas deixou as fundações da ditadura militar que comanda o Egito ainda hoje.

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