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Copa do Mundo: Por que os ‘cruzados’ ingleses foram proibidos de entrar nos estádios?

Torcedores ingleses vestidos como cruzados são impedidos de entrar nos estádios durante a Copa do Mundo no Catar [@ashrafhamaad/Twitter]

Seguranças catarianos impediram dois torcedores ingleses de entrar no Estádio al-Bayt para ver a partida entre sua seleção e os Estados Unidos, pela primeira fase da Copa do Mundo, porque ambos estavam vestidos como cruzados. A parafernália, foi dito pelos guardas, seria ofensiva.

O jornal Times of London confirmou que a Federação Internacional de Futebol (FIFA) advertiu os turistas ingleses a abandonar sua costumeira fantasia de cavaleiros medievais, incluindo escudo e espada, ou perderiam as partidas da seleção conhecida como Três Leões. Neste contexto, um oficial da FIFA comentou seu tamanho esforço “para criar um ambiente livre de discriminação e promover a diversidade dentro da entidade e em todas as suas atividades e eventos”.

A mídia ocidental e sua oposição à Copa do Mundo no Catar
[sabaaneh]

Citado pelo Times of London, argumentou o mesmo oficial: “Fantasias de cruzados, no contexto árabe, podem ser ofensivas aos muçulmanos. É por isso que meus colegas voltados ao combate à discriminação pediram aos torcedores para vesti-las do avesso ou mudar de roupa”.

A Secretaria de Relações Exteriores do Reino Unido aconselhou a torcida a prestar atenção em suas ações após aportarem em Doha: “As leis e costumes do país são muito diferentes daquelas do Reino Unido. Estejam cientes de suas ações para assegurar que não ofendam os locais”. Não obstante, dois bretões apareceram paramentados como cruzados medievais.

O Catar promove a Copa do Mundo FIFA de 2022 como um evento de tolerância e coexistência. Contudo, as roupas de cruzados ingleses trouxeram lembranças de tragédias históricas a árabes e muçulmanos – que acompanham com entusiasmo o torneio de futebol, em todo o mundo.

Árabes e muçulmanos não enxergam as cruzadas, com início no ano de 1095, como uma guerra qualquer, mas como parte de um esforço motivado por uma teologia extremista para erradicar o Islã, sua cultura e sua civilização. As cruzadas – uma série de campanhas militares da Europa – tiveram início em 27 de novembro de 1095, quando o papa Urbano II, em Clermont, na França, mobilizou cristãos medievais a “ajudar” os bizantinos e ocupar a cidade de Jerusalém.

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Quando os invasores cruzados tomaram Jerusalém, no ano de 1099, massacraram a maior parte da população – tanto muçulmanos quanto judeus. O famoso historiador Ibn al-Athir mencionou testemunhas oculares ao contabilizar a morte de 70 mil pessoas. Outros historiadores chegam a citar 100 mil vítimas dos ataques cruzados.

Os cruzados então transformaram a Mesquita de Al-Aqsa – terceiro lugar mais sagrado para os muçulmanos – em um estábulo e depósito de lixo. Os abusos sucederam uma série de chacinas cometidas ainda a caminho de Jerusalém. Os cruzados continuaram na região por séculos, com altos e baixos, mas os árabes nativos resistiram e sobreviveram.

Árabes e muçulmanos tentam coexistir com os europeus – ancestrais dos invasores cruzados –, apesar dos massacres coloniais cometidos por seus países na história recente. Não obstante, de tempos em tempos, o Ocidente insiste em celebrar seu passado hediondo.

Por vezes, não é um indivíduo comum que toma a iniciativa, mas um chefe-de-estado. Após os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, contra as Torres Gêmeas de Nova York, o ex-presidente George W. Bush recorreu ao termo “cruzada” para promover sua “guerra ao terror”: “Essa cruzada, essa guerra ao terror vai demorar; o povo americano tem de ter paciência”.

As invasões dos Estados Unidos no Iraque e Afeganistão e suas dezenas de milhares de mortos levaram árabes e muçulmanos a recordar mais uma vez da tragédia das cruzadas. Bush recorreu diretamente a um incentivo teológico para incitar a violência em países islâmicos.

“O presidente Bush crê que Deus lhe chamou para a presidência”, escreveu Bruce Lincoln sobre o líder republicano. O jornal The New York Times corroborou: “Bush crê realmente que está em uma missão concedida por Deus”. Segundo os relatos, disse o presidente: “Estou seguro de que Deus fala por mim … de que carrego a palavra de Deus”. Bush chegou a afirmar a um amigo que Deus “queria que os Estados Unidos liderassem uma cruzada para libertar [sic] o Oriente Médio e que este chamado à história havia sido dado ao país correto”.

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Em 2017, o também ex-presidente Donald Trump – que sucedeu a Bush na lista de incumbentes republicanos – reconheceu Jerusalém como capital israelense e transferiu sua embaixada de Tel Aviv para a cidade ocupada. Para tanto, Trump citou doutrinas bíblicas alusivas às cruzadas. No momento atual, cristãos evangélicos extremistas insistem na crença profética de que Jerusalém tem de estar sob controle judaico – na realidade, sionista – para que ocorra o Segundo Advento de Cristo.

O autor indiano Sameer Arshad Khatlani escreveu ao site My Pluralist: “As cruzadas moldaram a visão distorcida do Islã no Ocidente e suas políticas antagônicas em relação ao mundo islâmico. As distorções ocidentais do Profeta Muhammad, que representam enorme fonte de atrito entre as partes, datam precisamente das cruzadas”.

Khatlani observou que os fuzis e as metralhadoras usados por Brenton Tarrant para matar fiéis nas mesquitas de Christchurch, na Nova Zelândia, em março de 2019, foram decorados com imagens referentes às cruzadas. O mesmo alerta vale para Anders Behring Breivik, que apelou a uma suposta tomada islâmica e marxista da Europa para assassinar 77 pessoas na Noruega, em 2011. Tais ataques demonstram o perigo imposto por ideias e iconografias como essa.

O apoio da Europa à ocupação israelense da Palestina histórica – incluindo esforços para apagar a identidade islâmica da Mesquita de Al-Aqsa, em favor de uma narrativa judaico-sionista – são vistos por árabes e muçulmanos como uma extensão direta da doutrina dos cruzados.

Em eventos internacionais como a Copa do Mundo, atos de provocação como esse não parecem ter lugar. Sobre o caso, comentou Khatlani: “Ignorância não é desculpa”.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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