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O terror de uma extrema-direita que mata: ataques a refugiados na Alemanha e no Brasil

Manifestação antifascista, antirracista e pela saida do presidente Bolsonaro, ocupa Esplanada dos Ministérios, em 07 de junho de 2020 [Leopoldo Silva/Agência Senado]

Um dos rostos do terrorismo europeu de extrema-direita, a alemã Beate Zschäpe, foi condenada à prisão perpétua em 2018 por liderar um grupo que espalhou ódio, terror e ceifou a vida de dez seres humanos no país onde nasceu o nazismo. Nove deles eram refugiados muçulmanos.

Sim, o terrorismo, com todas as características da definição internacional desse vocábulo e liderado hoje no continenete europeu por alemães, brancos, cristãos e de extrema direita, vem crescendo de forma alarmante.

Estive na Alemanha e na Itália para me encontrar com um grupo de mulheres refugiadas em 2016. Ouvi relatos macabros, repletos de sangue, medo e violência real, sobre como agem os terroristas alemães contra mulheres, crianças e homens refugiados no país.

O julgamento de Beate, que durou quase cinco anos e terminou apenas em 2018, estarreceu a Europa e o mundo.

A terrorista alemã foi condenada à prisão perpétua e não terá o direito, como acontece em alguns casos, de sair durante dias simbólicos após cumprir quinze anos ininterruptos de prisão na Alemanha.

Charge Latuff

Mas o terror praticado pela extrema-direita alemã está muito longe do fim e tem sido tema constante de debate na imprensa local. Todos os refugiados muçulmanos mortos pelo grupo liderado por ela foram assassinados com a mesma arma e em situações semelhantes. Isso fez com que milhares de alemães pacíficos, que acolhem os refugiados, se perguntassem como outros alemães puderam praticar livremente tantos assassinatos semelhantes por anos sem serem descobertos pela polícia local.

O julgamento também revelou erros graves cometidos pela polícia e pelo serviço secreto da Alemanha, que, por décadas, descartaram a hipótese de que as mortes tivessem uma motivação de ódio e intolerância religiosa e  fossem ligadas a pessoas da extrema direita alemã.

Em 2019, enquanto os alemães debatiam o julgamento da terrorista europeia, um líder político que nem sequer poderia ser considerado de esquerda, Walter Lübcke, foi assassinado em sua própria casa.

O terrorismo protagonizado por grupos alemães continuou estarrecendo o mundo e, meses depois, a polícia alemã prendeu outros doze suspeitos de integrarem uma nova célula terrorista de extrema direita. Provas encontradas pelos investigadores mostram que o grupo planejava dois atentados contra mesquitas no país, assassinatos contra políticos solidários aos refugiados e contra mulheres e crianças muçulmanas em três estados diferentes da Alemanha.

Poucos meses depois, aconteceu um outro atentado no território alemão, cometido pelo ativista de extrema-direita Tobias Rathjen em um local árabe de música típica e narguilé, em Hanau.

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Um cenário pacífico, de alegria e comunhão entre as pessoas foi transformado em um cenário de horror, sangue e mortes.

O ataque de Tobias matou onze refugiados e causou imensa indignação em todo o mundo. Na casa do terrorista alemão, a polícia encontrou o cadáver de Tobias com o corpo de sua mãe. Antes de morrer, ele deixou uma carta reivindicando a autoria do crime e um vídeo com afirmações de ódio, xenofobia, e extrema crueldade contra refugiados de guerras.

Em outubro de 2019, um outro terrorista alemão chocaria o mundo. O neonazista Stephan, de Eisleben, sairia de sua casa vestido com um uniforme militar e com o objetivo de cometer um massacre contra judeus. Stephan alugaria um carro, o encheria de ódio e explosivos caseiros e algumas armas.

O terrorista europeu fracassaria em sua tentativa de entrar numa sinagoga devido ao forte esquema de segurança local.

Decidiu, então, executar a tiros uma mulher muçulmana que passava em frente ao local. Minutos depois, entrou em uma pequena lanchonete árabe de kebab, e assassinou um jovem muçulmano.

Nos últimos 15 anos, crimes de ódio como agressões físicas e assassinatos protagonizados por grupos neonazistas ultrapassaram em muito os atentados cometidos por extremistas muçulmanos no país. Uma pesquisa mostrou que os alemães temem muito mais um atentado de grupos da extrema direita do que um atentado executado por extremistas muçulmanos, até porque a polícia alemã passou os últimos anos monitorando dezenas de extremistas vindos do Oriente Médio e conseguiu expulsá-los do país. Terroristas alemães são inimigos internos, foram alimentados por anos por líderes políticos locais e se transformaram, tristemente, em uma metástase interna da Europa. O número de extremistas e ativistas com um discurso neonazista, ou seja, europeus, brancos e autoproclamados cristãos europeus, tem aumentado assustadoramente e qualquer pessoa que, como eu, tenha ido à Europa recentemente pôde testemunhar isso.

Refugiados e vítimas do extremismo de direita na Alemanha já eram contadas às dezenas desde a Reunificação, mas chegaram a 202 vítimas mortais recentemente. Muitos analistas acreditam que o número esteja subestimado, já que autoridades de municípios menores costumam registar esses crimes como simples assassinatos. Nos últimos anos, líderes políticos que expressam com atos ou palavras sua solidariedade a pessoas que tiveram suas vidas, casas e famílias devastadas por guerras e invasões ocidentais ao Oriente Médio, tornaram-se também alvos do ódio e do horror “made in Germany”.

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Na cidade de Kassel, o líder do governo, Walter Lübcke, foi assassinado à queima-roupa quando saía de casa, em junho de 2019, com um único tiro na cabeça. O extremista de direita Stephan E, era um velho conhecido da polícia, já havia cometido vários crimes de ódio e xenofobia, mas andava livremente pelas ruas da cidade, mesmo depois de ter atacado, vários anos antes, um centro de acolhimento de refugiados com uma bomba artesanal. O líder político Lübcke tornou-se um alvo mortal apenas por ter protagonizado uma série de ações bonitas e uma campanha pelo acolhimento de refugiados.

Á medida em que os bombardeios norte-americanos à Síria aumentavam, escolas e hospitais sírios eram destruídos e o número de mortos chegava a 200 mil pessoas, aumentavam os pedidos de refúgio na Alemanha e os refugiados se tornavam um dos temas mais debatidos no país e os alvos preferenciais de extremistas cristãos, neonazistas e odiadores em geral. O número de crimes que tinham centro de acolhimento a refugiados como o objetivo principal atingiu seu ápice entre 2015 e 2016, quando 995 crimes foram cometidos.

Uma outra célula terrorista, o grupo Oldschool Society, foi detido pelas autoridades antes da execução de vários atentados. Em 2015, os terroristas alemães que o formaram foram detidos em cinco cidades do país.

Também em 2015, um extremista de direita desferiu uma facada no pescoço da então candidata à prefeitura de Colônia Henriette Reker. Ela era uma conselheira municipal que lutava pelo acolhimento de crianças refugiadas e a quem tentava apenas sobreviver depois de ter tido sua vida destruída pela guerra, como os alemães a tiveram também depois da II Guerra Mundial. Reker sobreviveu ao ataque e, no dia seguinte, venceu as eleições.

No Brasil, o alarme começou a soar para mim, a partir dos ataques a mulheres muçulmanas registrados no Rio, em São Paulo, em Goiás e Minas Gerais em 2017. Foram dez em poucos meses. Ataques semelhantes foram cometidos por extremistas de direita e bolsonaristas a partir de 2018. Um deles me chocou profundamente e consegui localizar a vítima em São Paulo. Conversei com duas dessas mulheres muçulmanas e falarei sobre elas no próximo artigo.

Um outro ataque protagonizado por bolsonaristas e extremistas de direita no Brasil foi o ataque ao Restaurante Al Janiah.

O restaurante palestino Al Janiah, localizado na região central de São Paulo, um espaço lindo de resistência palestina, foi alvo de um ataque violento, xenófobo, racista e inaceitável em 2019.

Um grupo de cinco pessoas, gritando frases de extrema-direita, usando jargões xenófobos e portando facas, se aproximou do restaurante, atirou garrafas com coquetéis molotov e lançou bombas caseiras dentro do estabelecimento.

Nenhum dos refugiados que trabalham ali se feriu gravemente, a polícia foi chamada e conseguiu conter o ataque. Mas a democracia, a solidariedade, a humanidade de cada um de nós e a própria trajetória do Brasil como um país construído por imigrantes e refugiados foram feridas gravemente naquela madrugada.

Um outro ataque que chocou o Brasil foi o cometido por um extremista contra o refugiado sírio Mohamed Ali Abdelmoatty, então com 33 anos, em 2017.

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Em um vídeo publicado nas redes sociais, um homem armado com dois bastões de madeira agredia fisicamente Mohamed Ali, um refugiado sírio que vendia suas esfihas em Copacabana e era querido por muitos que o conheciam. O homem gritava para  que Mohamed  “voltasse ao seu país”, enquanto o feria e chutava sua barraca e seus instrumentos de trabalho. Foi uma das cenas mais tristes que vi desde que cheguei ao Rio.

Como jornalista, cristã e ativista pela paz, consegui localizar Mohamed, e com a ajuda de amigos em Copacabana, conseguimos unir milhares de brasileiros que decidiram ajudar o refugiado.

Através de um projeto de solidariedade humana e financiamento coletivo, com cada um doando o que podia, Mohamed pôde receber não apenas o afeto de milhares de brasileiros, mas novos instrumentos de trabalho e um food-truck para trabalhar em Copacabana, cozinhar sua comida árabe e ter novos sonhos, ao lado do filho que acabara de nascer.

A história linda de Mohamed, hoje meu amigo pessoal, também chamou a atenção do empresário Guilherme Benedictis, que promove eventos com food trucks, e ele acabou participando de eventos pelo Brasil. Não apenas isso. Mohamed Ali foi homenageado recentemente, na Câmara Municipal, com o título de Cidadão Honorário do Rio de Janeiro, a cidade que o acolheu, o ajudou  e mostrou ao mundo que é muito maior do que o ódio, a xenofobia ou a crueldade de alguns de seus moradores.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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