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Desconstruindo a máxima do ‘ópio do povo’ – Futebol é sobre política e luta de classes

Torcedores da equipe de futebol escocesa Glasgow Celtics exibem bandeiras da Palestina, em jogo contra o clube israelense Hapoel Beer Sheva [Chris Gunness/Twitter]
Torcedores da equipe de futebol escocesa Glasgow Celtics exibem bandeiras da Palestina, em jogo contra o clube israelense Hapoel Beer Sheva [Chris Gunness/Twitter]

Noam Chomsky está certo ao afirmar que, nos Estados Unidos, os esportes servem de ferramenta para criar um “mundo de fantasia”, necessário para proteger o povo da urgência de compreender, organizar e tentar instituir influência no “mundo real”.

Contudo, em entrevista à rede AlterNet, ao referir-se a comentaristas e programas esportivos, Chomsky mostrou-se surpreso diante das habilidades analíticas e intelectuais de pessoas engajadas na cultura dos esportes. Em último caso, insistiu: “[Esta cultura] não tem significado e provavelmente prospera justamente porque não tem sentido, como deslocamento dos graves problemas alheios à influência das pessoas, pois o poder está em outro lugar”.

Em parte, pode até ser verdade nos Estados Unidos e na Europa, onde os esportes representam um dos negócios mais lucrativos e esportistas são identificados pelo seu valor financeiro, como produtos destinados a compra e venda em um mercado sempre pujante.

Mas Estados Unidos e Europa não representam o resto do mundo. Enquanto no Ocidente privilegiado é relativamente fácil às pessoas que afastem-se conscientemente da vida política – devido à desconfiança generalizada nos políticos ou, por vezes, indiferença perante os resultados –, em outros lugares, os esportes, particularmente o futebol, carregam significados muito mais profundos e complexos, que devem ser analisados em um contexto político e socioeconômico absolutamente distinto.

O autor francês Marc Perelman tem pouca ou nenhuma paciência para o entretenimento esportivo. Alega que todo o exército é inútil, perigoso, desconcertante. Não está sozinho. A comparação teórica que muitos intelectuais, em particular à esquerda, pensam ser apropriada ao papel dos esportes na sociedade atual é com a representação da religião em Karl Marx: “ópio das massas”.

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Embora seja uma alegação compreensível do ponto de vista histórico – novamente, sob o contexto cultural de parte do Ocidente –, trata-se de um reducionismo e carrega, por vezes, um ar de etnocentrismo. Sim, a relação entre as sociedades ardentes do capitalismo ocidental e seus “consumidores” – classes trabalhadoras, relativamente marginalizadas – demanda uma análise profunda, mas o que se aplica a Europa e Estados Unidos não se aplica automaticamente ao restante do planeta.

Lenda do futebol egípcio Abu Trika desafia confisco de bens por parte do regime [Carlos Latuff/Monitor do Oriente Médio]

Lenda do futebol egípcio Abu Trika desafia confisco de bens por parte do regime [Carlos Latuff/Monitor do Oriente Médio]

O teórico antifascista italiano Antonio Gramsci afirmou: “Todos os homens são intelectuais, mas nem todos os homens têm função intelectual na sociedade”. De certa forma, isso significa que, apesar dos intelectuais funcionarem potencialmente como classe separada – ao analisar, desconstruir e ofertar sua própria sabedoria –, todo homem ou mulher, independente do papel social que representam, é absolutamente capaz de agir como intelectual, dentro de suas próprias capacidades e contextos sociais distintos, mesmo quando não designados como tal.

Gramsci demonstrou um certo incômodo diante do papel exercido pelos intelectuais europeus, especificamente italianos, nas primeiras décadas do século XX. Condenou a conformidade de alguns e o desengajamento social de outros. Referiu-se ao modo de pensamento do último grupo como “intelectualismo”, homens com ideias que fluem restritamente em circuitos fechados, não afetadas pelo mundo externo, tampouco capazes de influenciar os resultados externos ao seu casulo acadêmico.

Para os “intelectualistas”, é conveniente perceber todos os povos do mundo como uma única “massa”, incapaz de pensar ou agir fora de seu papel determinado pelo “sistema”. Para Gramsci, porém, as massas são muito mais complexas e inteligentes. Não são apenas ratos em um experimento de laboratório, incapazes de encontrar seu caminho ou tomar decisões.

Esta observação vale aos esportes, como a outros contextos e atividades sociais.

Ao longo das violentas convulsões políticas vivenciadas por diversos países árabes na última década, os torcedores de futebol efetivamente reconduziram seu papel na sociedade de meros “fãs do esporte” a agitadores políticos. Neste processo doloroso de transição, milhares foram mortos, torturados e aprisionados por ousar atravessar a linha imaginária que lhes foi determinada. De modo muito interessante, no caso, os torcedores de futebol passaram a se comportar como agentes políticos diretos, embora mantenham o mesmo contexto social que os identifica como fãs do esporte.

O fenômeno não é novo, expressado previamente na América do Sul, África e outros espaços sociopolíticos no Hemisfério Sul, por anos e anos.

Um exemplo que imediatamente vem à mente, no contexto ocidental, é a solidariedade expressa de torcedores da equipe escocesa Glasgow Celtics em relação ao povo palestino e outras lutas nacionais em todo o mundo. O comportamento dos Celtics pode ser verdadeiramente apreciado quando visto de uma perspectiva histórica, dado que o clube foi criado em tempos de convulsão política, grande sofrimento e racismo brutal que afligiram toda a Irlanda, Escócia e Inglaterra, no final do século XIX.

Os estádios de futebol são como espelhos sociais que refletem os humores coletivos em qualquer sociedade. A condição física do próprio estádio, o simbolismo das bandeiras e cânticos, o racismo ou a camaradagem, a alegria e as dores, tudo reflete um fenômeno muito maior que merece análises contundentes e novos estudos. Nada disso pode ser reduzido a algumas máximas teóricas e pressupostos apressados.

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Para muitas nações ao redor do mundo, o futebol não é uma forma de escapismo. Ao contrário, é o único espaço político no qual podem (lê-se “são permitidos”) operar. Apesar da suposta imagem de “fãs” ou acontecimentos “sem sentido”, é bastante comum que tais torcedores estejam cientes dos significados políticos, senão sociopolíticos, latentes aos eventos esportivos e seu próprio papel, não como espectadores, mas sim como agentes políticos ativos e, vez ou outra, agitadores de fato.

É por isso que árabes ou indianos costumam apoiar as seleções nacionais de Camarões e Nigéria durante a Copa do Mundo. Também é a razão pela qual torcedores do Celtics erguem bandeiras palestinas durante suas partidas na Europa – entre outros inúmeros exemplos. Os aficionados por futebol conduzem tais ações porque identificaram e posicionaram a si mesmos, com êxito, ao longo do tempo, dentro de categorias de raça ou classe que dividem os países entre pobres e ricos, colonizadores e colonizados, brancos privilegiados e “pessoas de cor” sem qualquer privilégio.

É verdade que, para as classes dominantes, o futebol pretende ser o “ópio do povo”. Entretanto, seria ingênuo pressupor que o povo, em toda a sua capacidade intelectual, é incapaz de assumir posse dessa mídia, como já fez em diversos outros espaços disputados.

Por definição, o futebol ou outras modalidades esportivas não boas nem ruins. Representam um dos muitos espaços sociopolíticos contestados que podem abarcar infindáveis significados, potencialmente reivindicados pelo povo como expressão de sua própria cultura, identidade coletiva e aspirações políticas.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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Palestina: quatro mil anos de história
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